Vanessa deitou-se, pela primeira vez num mês, a sorrir. Sabia que nessa noite iria dormir bem, sem acordar sobressaltada, sem sentir o coração descompassado e sem sentimento de puro terror. Conseguiu até desfrutar dos lençóis lavados, da luz coada do seu quarto e do silêncio que hoje era retemperador. Quem diria que aquela mesma cama e aquele cenário do seu 4º andar, que ainda a semana passada lhe causavam um cansaço que chegava a tocar a aversão, lhe podiam trazer hoje tanto conforto, tamanho bem-estar? Admirou-se com algo incontrolável dentro de si. Percebeu que era felicidade.

A meio da terceira dezena de vida, Vanessa tinha alcançado aquilo para o qual tinha corrido: acabara o curso que desde tenra idade tinha escolhido, conseguira cedo um trabalho na sua área, o que a distinguia de tantas amigas que se tornaram operadoras de caixa e agentes imobiliárias enfadadas, amealhara o suficiente para a entrada de um empréstimo que lhe permitira ter o seu próprio apartamento na cidade, ganhara independência.

Num momento desta fase de mar sereno, conheceu o Paulo. Num jantar de aniversário de uma das suas amigas, o primo de Teresa sentou-se ao seu lado e a conversa veio como as cerejas. Descobriram afinidades por entre tragos de vinho tinto. Nessa noite, Vanessa deitou-se a sonhar que Paulo era o protagonista de um dos romances que lia. Na verdade, os livros eram o “leit-motiv” da sua vida: devorava-os em formato de papel ou digital, destinando uma fatia considerável do seu orçamento mensal para guarnecer as estantes de casa, depois de se perder nas suas páginas em serões, noites e madrugadas sem fim. Em pouco tempo, o Paulo saltou dos seus livros para a sua vida. E como era bela a vida! Mas, como em muitos livros que lia, também o protagonista não era quem aparentava ser. O príncipe encantado transforma-se em sapo, quando Vanessa descobre que, afinal, não era a única princesa no seu palácio. O desgosto vem nublar-lhe os dias. Depois de regressar a casa a cada dia, afoga-se cada vez mais nos livros fiéis e nas redes sociais.

Encontra o anúncio de um Clube de Leitura. Pensa que este pode ser um bálsamo. Porque não? Está decidido. Irá. Chega o dia anunciado. Como habitualmente, maquilha-se cuidadosamente. A imagem que o espelho lhe devolve agrada-lhe. Pega em três livros e depois de enfrentar o trânsito citadino do fim de tarde, chega ao hotel. Respira fundo. À sala reservada para o encontro vão chegando rostos anónimos e diversos: veio a mulher madura, a aposentada, a avó, os jovens universitários, as mães de crianças, o casal de namorados, tintonas e trintinhas, quarentinhas e quarentonas. Não há lugar a apresentações. Cada um fala dos seus livros, cada um acrescenta o seu olhar, cada um transmite o seu entusiasmo. Titubeantemente. Três horas depois, Vanessa regressa a casa, pensando em como é bom o mundo dos livros e em como gostou de partilhar com os anónimos esse mundo. A expectativa do próximo Clube anima-a. E lá vieram o segundo, o terceiro, o sexto encontro do Clube: há caras que se repetem e a quem Vanessa começa agora a adivinhar uma vida. E nos intervalos dos encontros, outros encontros começam a intensificar-se: pelo whatsapp, o Clube de Leitura vai-se moldando, qual plasticina, transformando-se e reinventando-se a cada dia.

É então que o vírus chega, nos vira do avesso e nos centrifuga a vida, transformando os nossos dias em algo que ainda estamos a tentar compreender. Os membros daquele Clube de Leitura, pouco mais que anónimos, ficam em casa. E começam verdadeiramente a conhecer-se. A plataforma digital de comunicação apadrinha as interações.
Vanessa está no seu 4º andar. Com tudo e com nada. Também Ivone está a poucos metros, na sua solidão. A Micaela e o Duarte já não vão à faculdade e a Cidália não pode abraçar os netos. A Rita, a Anabela, a Maria José, a Maria e a Alice são agora professoras dos seus filhos e o Raúl ensina a partir de casa. Num serão do início deste filme, o Clube reúne-se virtualmente e por entre medos e ansiedades até se consegue falar de livros e das poucas leituras que foram possíveis. As conversas voam para lá do término do encontro.

Na manhã seguinte, Vanessa acorda com febre. Todo o grupo fica a saber que dali a pouco, poucochinho, estará com muita tosse, que dali a quase nada sentirá falta de ar, e que mais um pouco verá os seus lábios a ficarem arroxeados. Vanessa continua sozinha no seu 4º andar. E a Ivone, a Micaela, o Duarte, a Cidália, mas também a Rita, a Anabela, a Maria José, a Maria, a Alice e o Raúl afligem-se. Caramba, é um deles que está doente! E sozinho! E muito provavelmente é “o bicho”! Silêncio da Vanessa no grupo de whatsapp. Respirações em suspenso. Quando Vanessa volta a escrever, conta que a Micaela e a sua mãe, médica, a foram socorrer. E as lágrimas escorrem de alívio, compaixão, união, pelos rostos outrora anónimos. Vanessa estava agora medicada e seguida. Na cama onde a febre de Vanessa ia subindo e cedendo ao antipirético estava agora um grupo de pessoas unido para além do gosto por livros. Estava uma família. Uma nova família.

Os dias seguintes são duros para Vanessa: tenta dominar o pânico, a febre e a solidão. A Micaela vai-lhe deixando à porta alguma comida e medicamentos embrulhados em carinho. O grupo dá-lhe os bons dias e as boas noites por entre conversas soltas ao ritmo do relógio que teima em se arrastar. Vanessa vai melhorando, aprisionada no seu confortável e insuportável 4º andar.

Até que ao trigésimo dia tem que se preparar. Tem que voltar ao trabalho que adora. Aquele que a faz sentir mais pessoa, aquele que lhe devolve os sorrisos mil que tanto oferece aos outros. À espera dela, ainda que separados por um monitor, estão vinte e seis meninos, ansiosos pelo reencontro com a professora Vanessa, das suas histórias e da sua voz doce e firme, da sua infindável ternura, do seu sorriso onde todos cabem, do muito que tem para ensinar e dar. Vanessa combate o corpo ainda cansado mas ansioso por este reencontro. Reinventa-se, forçada por um novo paradigma. Maquilha-se como se costumava maquilhar antes da chegada do vírus. Cuidadosamente. O coração bate de ansiedade, pelo muito que quer voltar a reencontrar os seus meninos. É chegada a hora. E num fôlego, o dia aproxima-se do fim. É tempo de regressar ao grupo e de lhes dizer que “não há nada como trabalhar no que se ama”. Esta noite Vanessa vai dormir. Feliz.

 

Texto da Autoria da Colaboradora SDO, Cláudia Espassandim